sábado, 19 de março de 2011

Antônio Nobre, Antônio; BH, 0190302011.

Que noite de inverno! Que frio, que frio!
Gelou meu carvão:
Mas boto-o à lareira, tal qual pelo estio,
Faz sol de verão!
Nasci, num reino d'Oiro e amôres,
À beira-mar.

Ó velha Carlota! tivesse-te ao lado,
Contavas-me histórias:
Assim... desenterro, do Val do Passado,
As minhas Memórias.
Sou neto de Navegadores,
Heróis, Lòbos-d'água, Senhores
Da Índia, d'Além-mar!

Mesmo coveiro, tocando viola,
A rir e a cantar!
Empresta, bom homem, a tua sachola,
Eu quero cavar:
E o vento mia! e o vento mia!
Que irá no Mar!

Erguei-vos, defuntas! da tumba que alveja
Qual Lua, a distância!
Visões enterradas no adro da Igreja
Branquinha, da Infância.
Que noite! ó minha Irmã Maria
Acende um círio à Virgem Pia,
Pelos que andam no alto Mar...

Lá vem a Carlota que embala uma aurora
Nos braços, e diz:
"Meu lindo Menino, que Nossa Senhora
O faça feliz!"
Ao Mundo vim, em têrça-feira
Um sino ouvia-se dobrar!

E Antônio crescendo, sãozimho e perfeito,
Feliz que vivia!
(E a Dor, que morava com êle no peito,
Com êle crescia...)
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa têrça-feira,
Estive já para me matar...

Mas foi a uma festa, vestido de anjinho,
Que fado cruel!
E a Antônio calhou-lhe levar coitadinho!
A Esponja do Fel...
Ides gelar, água das fontes
Ides gelar!

A tia Delfina, velhinha tão pura,
Dormia a meu lado
E sempre rezava por minha ventura...
E sou desgraçado!
Águas do rio! Águas dos montes!
Cantigas d'água pelos montes,
Que sois como amas a cantar...

E eu ia às novenas, em tardes de Maio,
Pedir ao Senhor:
E, ouvindo êsses cantos, tremia em desmaio,
Mudava de cor!
Passam na rua os estudantes
A vadrulhar...

E a Mãe-Madrinha, do tempo da guerra
A mailos Franceses,
Quando ia ao confesso, à ermida da serra,
Levava-me, às vêzes.
Assim como êles era eu dantes!
Meus camaradas! estudantes!
Deixai o Poeta trabalhar.

Santinho como ia, santinho voltava:
Pecados? Nem um!
E a instância do padre dizia (e chorava):
"Não tenho nenhum..."
Ó Jó, coberto de gangrenas,
Meu avatar!

Às noites rezava, (e rezo inda agora)
Ao pé da lareira.
(A chuva gemente caía lá fora,
Fervia a chaleira...)
Conservo as mesmas tuas penas,
Mais tuas chagas e gangrenas,
Que não me farto de coçar!

 - Que Deus se amercie das almas do Inferno!
 - Amém! Oxalá...
E o môço rosnava, transido de inverno:
 - Que bom lá está!
E a neve cai, como farinha,
Lá dêsse moinho a moer, no Ar.

O sino da Igreja tocava, à tardinha:
Que tristes seus dobres!
Era a hora em que eu ia provar, à cozinha,
O caldo dos Pobres...
Ó bom Moleiro, cautlinha!
Não desperdices a farinha
Que tanto custa a germinar...

Ó velhas criadas! na roca fiando,
Nos lentos serões:
Corujas piando, Farrusca ladrando
Com mêdo aos ladrões!
Andais, à neve, sem sapatos.
Vós que não tendes que calçar!

O zé do Telhado morava, ali perto:
A triste Viúva
A nossa casa ia pedir, era certo,
Em noites de chuvas...
Corpos ao léu, vesti meus fatos!
Pés nus! levai êsses sapatos...
Basta-me um par.

Ó feira das uvas! em tardes de calma...
(O tempo voou!)
Pediam-me os Pobres "esmola pela alma
Que Deus lhe levou!"
Quando eu morrer, hirto de mágoas,
Deitem-me ao Mar!

E havia-os com gôta, e havia-os herpéticos,
Mostrando a gangrena!
E mais, e ceguinhos, mas era dos éticos
Que eu tinha mais pena...
Irei indo de frágua em frágua,
Até que, enfim, desfeito em água,
Hei de fazer parte do Mar!

Chegou uma carta tarjada: a estampilha
Bastou-me enxergar...
Coitados daqueles que perdem a filha,
Sôbre águas do Mar!
No Panthéon, trágico, o sino
Dá meia-noite, devagar:

Ó tardes de outono, com fontes carpindo
Entre erva sedenta!
Os cravos a abrirem, a Lua aspergindo
Luar, água-benta...
É o Vítor, outra vez menino,
A compor um alexandrino,
Pelos seus dedos a contar!

Ao dar meia-noite no cuco da sala,
Batiam: "Truz! truz!"
E o Avô que dormia, quietinho na vala,
Entrava, Jesus!
Que olhos tristes tem meu vizinho!
Vê-me a comer e põe-se a ougar:

Nas sachas de Junho, ninguém se batia
Com o nosso caseiro:
Que espanto, pudera! se da freguesia
Êle era o coveiro...
Sobe ao meu quarto, bom velhinho!
Que eu dou-te um copo dêste vinho
E metade do meu jantar.

Morria o mais velho dos nossos criados,
Que pena! que dó!
Pedi-lhe, tremendo, fizesse recados
Á alminha da Avó...
Bairro Latino! dorme um pouco,
Faze, meu Deus, por sossegar!

Ó banzas dos rios, gemendo descantes
E fados do Mundo!
Ó águas falantes! ó rios andantes,
Com eiras no fundo!
Cala-te, Georges! estás já rouco!
Deixa-me em paz! Cala-te, louco,
Ó boulevard!

Trepava às figueiras cheiinhas de figos
Como astros no Céu:
E em baixo, aparando-os, erguiam mendigos
O rôto chapéu...
Boas almas, vinde ao meu seio!
Espíritos errantes no Ar!

Ó Lua encantada no fundo do poço,
Moirinha da Mágoa!
O balde descia, quimeras de Môço!
Trazia só água...
Sou médio: evoco-os, noite em meio!
Vós não acreditais, eu sei-o...
Deixá-lo não acreditar.

Meus versos primeiros estão no adro, ainda,
Escritos na cal:
Cantavam Aquela que é a rosa mais linda
Que tem Portugal!
Se eu vos pudesse dar a vista,
Ceguinhos que ides a tactear...

A Lua é ceifeira que, às noites, ensaia
Bailados na Terra!
Luar é caleiro que, pálido, caia
Ermidas na serra...
Quando essa sorte me contrista!
Mas ah! mais vale não ter vista
Que um mundo dêste ter de olhar...

O Conde da Lixa sabia o Horácio,
Tintim por tintim!
E dava-me à noite, passeando em palácio,
Lição de latim.
A Morte, agora, é a minha Ama
Que bem que sabe acalentar!

E entrei para a escola, meu Deus! quem me dera
Nessa hora da Vida!
Usava uma blusa, que linda que era!
E trança comprida...
À noite, quando estou na cama:
"Nana, nana, que a tua Ama
Vem já, não tarda! foi cavar..."

Os outros rapazes furtavam os ninhos
Com ovos a abrir;
Mas eu mercava-lhes os bons passarinhos,
Deixava-os fugir...
Camões! Ó Poeta do Mar-bravo!
Vem-me ajudar...

Os Presos, às grades da triste cadeia,
Olhavam-me em face!
E eu ia à pousada do guarda da aldeia
Pedir que os soltasse...
Tenho o nome do teu escravo:
Em nome dêle e do Mar-bravo
Vem-me ajudar!

E quando um malvado moía a chibata
Um filho, ou assim,
Corria a seus braços, gritando: "Não bata!
Bata antes em mim..."
E o Vento geme! e o Vento geme!
Que irá no Mar!

E quando dobrava na terra algum sino
Por velho, ou donzela,
A meu Pai rogavam "deixasse o Menino
Pegar a uma vela..."
Lôbos-d'água, que ides ao leme
Tende cuidado! a lancha treme.
Orçar! orçar!

Enterros de anjinhos! Ó dores que trazem
Aos tristes casais!
Há doces, há vinhos, senhores que fazem
Saúdes aos pais...
Meu velho Cão, meu grande amigo,
Por que me estás assim a olhar!

A Pátria doidinha por montes andava,
À Lua, em vigília!
Olhai-me, Doutôres! Há doidos, há lava,
Na minha Família...
Quando eu choro, choras comigo
Meu velho Cão! és meu amigo...
Tu nunca me hás de abandonar.

E os anos correram, e os anos cresceram,
Com êles cresci:
Os sonhos que tinha, meus sonhos... morreram,
Só eu não morri...
Frades do Monte de Crestelo!
Abri-me as portas! quero entrar...

Fiquei pobrezinho, fiquei sem quimeras,
Tal qual Pedro-Sem,
Que teve fragatas, que teve galeras,
Que teve e não tem...
Môço Lusíada? criança!
Por que estás triste, a meditar?

Vieram as rugas, nevou-me o cabelo
Qual musgo na rocha...
Fiquei para sempre sequinho, amarelo,
Que nem uma tocha!
Vês teu país sem esperança
Que tudo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?

E a velha Cartola, revendo-me agora
Tão pálido, diz:
Meu pobre Menino! que Nossa Senhora
Fêz tão infeliz..."

                                                               (Paris, 1891.)

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