sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Gonçalves Dias, I Juca Pirama; BH, 0300902011.

VI

- Filho meu, onde estás? - Ao vosso lado;
Aqui trago provisões; tomai-as,
As vossas fôrças restaurai perdidas,
E a caminho, e já! - Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!
- Sim demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já! - Que novos males
Nos resta de sofrer? - que novas dores,
Que outro fado pior Tupã nos guarda?
- As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para nòvo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta. - Mas tu tremes!
- Talvez do afã da caça... - Oh filho caro!
Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... - E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tacteando as trevas
De sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal correu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: - foge, volta,
Encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar ocorrera o filho,
Êle o via; êle o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!

- Tu prisioneiro, tu? - Vós o dissestes.
- Dos índios? - Sim, - De que nação? - Timbiras.
- E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça...
- Nada fiz... aqui estou. - Nada! -  Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
- Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo!
- Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia...
- E depois?... - Eis-me aqui. - Fica essa taba?
- Na direção do sol, quando transmonta.
- Longe? - Não muito. - tens razão: partamos.
- E quereis ir?... - Na direção do ocaso.

VII

"Por amor de um triste velho,
Que ao têrmo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedestes
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis, - e mas foram
Senhores em gentileza.

"Eu porém nunca vencido,
Nem nos combates por armas,
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Mandai vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez do meu filho,
De haver-me por pai se ufane!"
Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com tôrvo acento:

- Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Êle chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. -

Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!

VIII

"Tu choraste na presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Sêres prêsa de vis Aimorés.

"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontre amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,
Nem as côres da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vosso furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contato dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito e sòzinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."

IX

Isto dizendo, o miserando velho,
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins  da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho pára!
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vêzes
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
- Êsse momento só vale a pagar-lhe
Os tão compridos trances, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram.
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Êle que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.

A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revôlta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem,
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas êrmas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas do povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.

Era êle, o Tupi, nem fôra justo
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.

- Basta! clama o chefe dos Timbiras,
- Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister fôrças. -

O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Corram livres as lágrimas que choro,
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."

X

Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do môço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que êle contava,
Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!
!Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest'hora diante de mi:

"Eu disse comigo: que infâmia d'escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como êle, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"

Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do môço guerreiro, do velho Tupi,
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que êle contava,
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!"

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