segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Tomás Antônio Gonzaga, Marília de Dirceu, Lira XXXV.

Em cima dos viventes fatigados
Morfeu as dormideiras espremia:
Os mentirosos sonhos me cevavam;
Na vaga fantasia
Ao vivo que pintavam
As glórias, que desperto,
Meu coração pedia.

Eu vou, eu vou subindo a nau possante,
Nos braços conduzindo a minha bela;
Volteia a grande roda, e a grossa amarra
Se enleia em torno dela;
Já ponho a proa à barra,
Já cai ao som do apito
Ora uma, ora outra vela.

Os arvoredos já se não distinguem:
A longa praia ao longe não branqueja:
E já se vão sumindo os altos montes,
Já não há que se veja
Nos claros horizontes,
Que não seja vapores,
Que Céu, e mar não seja.

Parece vão correndo as negras águas,
E o pinho qual rochedo está parado;
Ergue-se a onda, vem à nau direita,
E quebra no costado;
O navio se deita,
E ela finge a ladeira
Saindo do outro lado.

Vejo nadarem os brilhantes peixes,
Cair do lais a linha que os engana;
Um dourado no anzol está pendente,
Sofre morte tirana,
Entretanto que a sente,
Ao tombadilho açoita
A cauda, e a barbatana.

Sobre as ondas descubro uma carroça
De formosas conchinhas enfeitadas;
Delfinas a movem, e vem Tétis nela;
Na popa está parada;
Nem pode a Deusa bela
Tirar os brandos olhos
Da minha doce amada.

Nas costas dos golfinhos vêm montados
Os nus Tritões, deixando a esfera cheia
Com o rouco som dos búzios retorcidos.
Recreia, sim, recreia
Meus atentos ouvidos
O canto sonoroso
Da música sereia.

Já sobe ao grande mastro o bom gajeiro;
Descobre arrumação, e grita - terra!
À murada caminha alegre a gente;
Alguns entendem que erra;
Pelo imóvel somente
Conheço não ser nuvem,
Sim o cume d'alta serra.

De Mafra já descubro as grandes torres;
(É que nova alegria me arrebata!)
De Cascais a muleta já vem perto,
Já de abordar-nos trata;
Já o Piloto esperto,
Inda debaixo manda
Soltar mezena, e gata.

Eu vou entrando na espaçosa barra,
A grossa artilharia já me atroa;
Lá ficam Paço d'Arcos, e a Junqueira;
Já corre pela proa
Uma amarra ligeira;
E a nau já fica surta
Diante da grã Lisboa;

Agora, agora sim, agora espero
Renovar da amizade antigos laços;
Eu vejo o velho pai, que lentamente
Arrasta a mim os passos;
Ah! como vem contente!
De longe mal me avista,
Já vem abrindo os braços.

Dobro os joelhos, pelos pés o aperto;
E manda que dos pés ao peito passe;
Marília, quando eu fiz, fazer intenta;
Antes que os pés lhe abrace
Nos braços a sustenta;
Dá-lhe de filha o nome,
Beija-lhe a branca face.

Vou descer a escada, oh Céus, acordo!
Conheço não estar no claro Tejo;
Abro os olhos, procuro a minha amada,
E nem sequer a vejo.
Venha a hora afortunada,
Em que não fique em sonho
Tão ardente desejo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário