quarta-feira, 16 de julho de 2014

Llewellyn Medina, A ética de Don Giovanni.





A ética de Don Giovanni

Llewellyn Medina

Membro da Academia de Letras de Teófilo Otoni


Mozart compôs três óperas, escritas em italiano e cujos libretos são de autoria de Lorenzo da Ponte.

São as chamadas “óperas italianas”, tidas como as melhores do repertório operístico  do compositor austríaco, embora dentre as óperas escritas em alemão, “A Flauta Mágica” seja a de maior apelo popular, quem sabe, em razão da ária “A rainha da noite”, de todos muito conhecida.

Considerando-se o conjunto operístico mozarteano, “Don Giovanni” - K. 527 (o que permite a conclusão de ser uma composição da maturidade de W.A.M.) - é considerada a melhor ópera de Mozart, certamente em razão da  riqueza e complexidade da personagem que dá título à obra.

Don Giovanni é um nobre que integra a classe dominante e a versão de Lorenzo da Ponte trata de uma história já conhecida na época – a do conquistador Don Juan; passa-se a ação  na sociedade espanhola do séc. XVII e o personagem título tem por razão única de viver a arte de seduzir as mulheres, pelo que, na busca de satisfazer  seu propósito, Don Giovanni é sagaz, coerente, lógico, implacável, destrutivo e preconceituoso.

Embora integre a nobreza, não discrimina e nem leva em conta a origem, classe social, idade e aparência de suas presas, desde que as possa incluir no livro em que seu “valet de chambre” - o criado Leporello – registra as conquistas do patrão.

Don Giovanni não segue a ética judaico-cristã que proíbe desejar a mulher do próximo (Exôdus, 20.17); nem nem a filosofia greco-romana que manda não causar dano a outrem (Digesto, l. l). É emblemática a ária “Eh consolatevi, son vite voi...”, em que são relatadas as conquistas do rufião na Itália (640 mulheres); na Alemanha (231); na França (100); na Turquia (91) e, finalmente, na Espanha, nada menos do que “mille è tre”. São uma ária e ópera tão conhecidas ao longo dos anos que, já no século XIX,   Balzac menciona aquela,  em sua “ A Comédia Humana”, no romance “A Falsa Amante” (vide pág.  650, volume 2, da publicação da Editora Globo – Coleção Biblioteca Azul).

Efetivamente, Don Giovanni não observa os princípios éticos que Platão ensina em “O Banquete”, pouco lhe importando os conceitos de bom e mau; bem e mal, parecendo-me que está mais próximo da ética individualista e utilitarista do Iluminismo, e em que busca,  tão somente o fim a que visa, o sucesso da empreitada, sua única razão de viver.

Leporello arrola camponesas, camareiras, citadinas condessas, baronesas, marquesas e princesas.  Há mulheres de todas as origens, de todas as idades. Na mulher ruiva, Don  Giovanni admira   a gentileza; na morena, a constância; na branca, aprecia a doçura.


No inverno, Don Giovanni dá preferência à gordinha; e no verão, a delgada; na mulher alta, persegue a majestade; e a baixinha é sempre encantadora... Conquista as mulheres idosas, tão somente para as incluir em sua lista, mas, atenção, “sua passion predominante è la giovin principiante”; não se importa se sua presa é rica, feia, bela, “purché porti la gonnella, voi sapete quel che fa”.

Este é pano de fundo, o campo de batalha em que Don Giovanni é soberano e para tanto, usa dos mais engenhosos estratagemas, como, por exemplo disfarçar-se no  de Don Otavio – noivo de Donna Anna- para seduzir esta, que, ao descobrir o engôdo (?), grita por socorro e obriga o rufião a fugir. Vem em seu socorro o  pai, um ancião, que enfrenta Don Giovanni, chamando-o a um duelo.

Don Giovanni chega a desdenhar da disparidade de forças, mas, em razão da firmeza de Don Otavio, o vilão, depois de advertir sua vítima (“Misero, attendi, se voui morrir”), mata friamente o pai de Donna Anna.

Adiante, Don Giovanni encontra Donna Elvira, uma antiga conquista, e, de início, confunde-a com “qualche bellla da vago abbandonata”, mas, em seguida, ao reconhecê-la, quer dela desistir e, para tanto, transfere para Leporello o encargo...

Aí está outra faceta da complexa personalidade de Don Giovanni, que vai em frente, em busca de sua nova presa e logo se depara com Zerlina e o noivo Masetto,  que comemoram suas  recentes núpcias. Tal circunstância estimula ainda mais Don Giovanni, que, diante de Zerlina exclama: “oh guarda, che bella gioventù, que belle donne!”

Aqui, Don Giovanni e Zerlina cantam o belo dueto “là ci darem la mano...” para concluir o enlevo que então os une, a despeito dos protestos de Masetto. Mas Donna Elvira aparece intempestivamente e, num ímpeto de proteger a camponesa Zerlina, mas também com uma ponta de ciúme, afasta a vítima, livrando-a do predador Don Giovanni.

Adiante, ao ser perseguido por Masetto e seus amigos, Don Giovanni e Leporello terminam por esconderem-se no cemitério. Ali encontra-se com o espírito de Don Otavio, materializado numa estátua; ou a representação da morte,
que sentencia: “De rider finirai pria dell'aurora!... Ribaldo, audace! Lascia à morti la pace!”

Don Giovanni desafia a estátua do Comendador (o destemor e a coragem são atributos da personalidade do sedutor), chamando-o de “vecchio buffonissimo”  e convida a estátua a cear em sua casa, exigindo que a estátua confirme o convite: “Parlate, se potete. Verrete a cena?” “Si!”, responde a estátua, que, na verdade, é a Morte, ou seu anjo mensageiro.

O desfecho é encenado na sala de jantar de do palácio de Don Gionvanni, com a mesa posta por Leporello. É servido “excelllenti marzimino!”... e um saboroso prato (“Ah que piatto saporito!” Ao fundo, ouve-se a ópera “La cose rara”, bem ao gosto de Don Giovanni...

Segue alegre o jantar, até que Don Giovanni e Leporello ouvem um grito e, logo depois “si bate alla porta” e, então, surge a estátua: “Don Giovanni, a cenar teco/M'invitasti e son venuto!”

É o clímax e aqui se vê a firmeza de Don Giovanni, no curso de um fantástico diálogo com a estátua, que parece perplexa em razão do não arrependimento de Don Giovanni (Pentiti scellerato!” “Non, vcechio infatuato!” responde Don Giovanni, firmemente)) A estátua repete outras vezes o apelo de arrependimento, mas Don Giovanni permanece firme e irredutível,  e, altaneiramente, diz não ter medo; daí a estátua exclama, finalmente, “Ah! Tempo più non viè!”; e estende a Don Giovanni a mão, ao tempo  em que pede a dele em penhor, num cumprimento fatal entre a Indesejada das Gentes e o personagem principal da ópera. Don Giovanni não recua, estende sua mão  à Morte e esta põe fim ao ritual de passagem, desta para a outra vida.

No desfecho do drama, Don Giovanni revela traços de seu caráter: a coragem; a coerência, ao não atender os comandos de arrependimento que a Morte lhe dirige, o que nos leva a concluir ter Don Giovanni preferido  manter a coerência da vida que escolheu levar: morrer, assim como viveu, sem tergiversar, coerente com seus princípios, sem trair sua razão de viver...

Não há, em Don Giovanni, o bem ou o mal, no sentido platônico; ou no sentido cristão; talvez haja o senso maquiavélico de perseguir seu objetivo, viver a vida numa linha reta, previsível e cartesiana.    

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