terça-feira, 26 de maio de 2015

OITO POEMAS DO POETA SÍRIO ADONIS:


Versões em português de Luís COSTA





O ROSTO DE UMA MULHER


Eu morava no rosto de uma mulher
que mora numa onda.
A maré cheia trouxe-a até à praia
cujo porto desapareceu nas suas conchas .
Eu morava no rosto de uma mulher
que me assassinou, que no meu sangue de navegador
até ao fim da loucura amorosa
quer ser um farol, que se apaga.


O CÂNTICO DA MULHER

De lado,
Tinhas o rosto de um homem idoso
Que, assaltado por dias de mágoa,
Me trouxe o seu frasquinho esverdeado
E pedia que tomasse a última refeição.
Esse frasquinho é uma enseada,
O casamento de um barco com uma enseada
Nos dias em que as praias se afundam
E as gaivotas encontram os rostos
E o capitão pressente o seu futuro.
Ele veio cheio de fome até mim, eu dei-lhe o meu amor
Como um pão, como uma bilha, como um leito
E abri as portas ao vento e ao sol
E partilhei com ele a última refeição.


O CÂNTICO DO HOMEM   

De lado
Vi o teu rosto pintado no tronco da palmeira
O sol negro nas tuas mãos
Então montei a minha saudade da palmeira
Trazia a noite num cesto, trazia a cidade às costas
E polvilhei-me à volta dos teus olhos, estudei
O meu rosto
E vi o teu rosto, havia nele a fome de uma criança
E esconjurei-o com fórmulas mágicas
E polvilhei- o com jasmim


HOMEM E MULHER

Mulher: quem és tu?

Homem: um bobo expatriado
da rocha dos meteoros,
da raça do demónio.
E tu, quem és?
Viajaste pelo meu corpo?

Mulher: sempre e repetidamente.

Homem: o que viste?

Mulher: vi a minha morte.

Homem: Trazias o meu rosto?
E olhaste a minha sombra como um sol?
E olhaste o meu sol como uma sombra?
E desceste  às minhas profundezas e descobriste-me?

Mulher: e tu, descobriste-me?

Homem: se me descobriste, foste capaz
de me convencer?

Mulher: Não.

Homem: fiz-te bem e tiveste receio?

Mulher: sim, sem dúvida.

Homem : e reconheceste-me?

Mulher: e tu, reconheceste-me?


DAMASCO


Damasco
Caravana de estrelas no fundo verde
Dois peitos de brasas e laranjas
Damasco
O corpo do amante no leito
Como um arco – íris, como uma lua crescente
Em nome da água
Ele abre
A garrafa dos dias
Gira todos os dias
Na tua órbita nocturna
Cai como uma vítima
No teu vulcão cobiçado
As árvores dormitam ao redor do meu quarto
E o meu rosto
É uma maçã
Meu amor
É uma almofada, uma ilha...
Se ela viesse
Se ela viesse
Damasco
Fruto da noite, ó lugar de descanso.


A FLORESTA MÁGICA

Que seja assim:
os pássaros chegaram e as pedras
juntaram-se às pedras
assim:
acordo as estradas e as noites
e  seguimos na procissão das árvores

Os ramos são malas verdes e os sonhos
    uma almofada
numa viagem de férias
onde a manhã continua estranha
onde o seu rosto
permanece como um selo sobre os  mistérios

Assim:
Um raio indicou-me o caminho, uma voz chamou-me
do fim mais extremo do muro


QUATRO CANÇÕES PARA TIMUR

Espelho da lei

Irrompe
Sobre o corpo da rapariga
Sobre o corpo das grávidas
Irrompe e mata
Não poupes ninguém, nem velhos nem jovens...

Esta é a minha lei


O saque

O pássaro em chamas,
Cavalos, mulheres, ruas
São dilacerados como pão
Diante dos olhos de Timur


Eles

Eles chegaram
Nus entraram em casa
Escavaram
Enterraram as crianças
E foram embora


A maré

Mihyâr cantou, curvou-se, rezou,
falou livre dos pecados
E reconheceu a sua crença
Abençoou o rosto da loucura
Derreteu a ave na sua voz
E desejou que a sua voz
Fosse uma maré – e assim foi.


O FALCÃO

Os cavalos aproximaram-se e da margem chamaram-nos:
Voltem para trás pois nada de mal vos acontecerá.
Mas eu nadava, e o meu irmão mais novo nadava igualmente.
Virei-me para o encorajar, mas ele não me ouviu.
E com medo de se afogar deixou-se encandear pela garantia
daquelas palavras. E nadou, à pressa , para trás, enquanto eu atravessava o Eufrates.
Então, eles correram na direcção do meu irmão, que de boa-fé
se dirigia para eles, e quando olhei para ele, decapitaram
aquele jovem de treze anos e levaram-no. Eu, porém,
corria, corria sempre em frente, sentia-me como um pássaro
-  assim tão rápido  corriam  as minhas pernas.

ADONIS, أدونيس ( Ali Ahmad Said )

Adonis ( poeta e ensaísta sírio-libanês, nasceu em Al Qassabin perto de Lataquia, no Norte da Síria, a 1 de Janeiro 1930. O seu verdadeiro nome é Ali Ahmed Said Esber. Ainda bastante jovem começa a trabalhar na agricultura. Porém, o seu pai incita-o a interessar-se pela poesia.
Com apenas 13 anos declama alguns dos seus versos perante o presidente sírio, que na altura se encontrava em viagem de visita pela província.
O presidente fica de tal modo impressionado que acede realizar o grande sonho do jovem poeta: a frequência de um liceu francês.
Em 1954 sai da Universidade de Damasco com uma licenciatura em filosofia. Em 1955 encontra-se preso, durante seis meses, por ser membro do Partido Social Nacionalista Sírio. Depois da sua libertação,  instala-se em Beirute (Líbano) onde, em 1957, funda, com o também poeta Yousuf el-Khal, a revista literária mais importante do espaço árabe: «Schiir» (Poesia).
Em 1980, depois da guerra civil libanesa, abandona o Líbano para se refugiar, a partir de 1985, em Paris. Hoje vive entre Beirute e Paris. Nesta cidade foi , durante vários anos, professor catedrático de árabe na Sorbonne.
O poeta tem traduzido muitos autores franceses para o árabe. Entre eles encontram-se Racine, Baudelaire, Henri Michaux e Saint Jonh-Perse.
Adonis é hoje considerado um dos poetas árabes mais importantes do nosso tempo. É um trabalhador fronteiriço entre duas culturas: a oriental e a ocidental, um clássico moderno que conseguiu realizar uma síntese entre a forte tradição da poesia árabe e a lírica moderna do Ocidente. É precisamente esta polifonia que permite aos leitores, de diversas culturas, o acesso à sua obra.
A sua poesia contribuiu fortemente para a renovação da língua árabe, influenciando uma geração de escritores e poetas árabes.
Escrever poesia significa para ele uma luta permanente contra a memória fechada , sobre si mesma, da cultura, ou seja, contra a ditadura do passado inflexível.
O nome Adonis é considerado no mundo árabe, desde os anos 60, um sinónimo de modernidade. Aí se afirmou como um dos principais porta-vozes da corrente crítica e pós-moderna. Diz ele: 
Nós rebentámos a linguagem. Rebentar a linguagem significa a invenção de relações novas e invulgares entre as palavras, a invenção de novas relações entre a palavra e as coisas, dentro e fora. É a tentativa de procurar absorver aquilo que, racionalmente, não é possível, isto porque a poesia lírica representa uma forma de violação da linguagem, ou seja, é a tentativa de obrigar a linguagem a dizer aquilo que a prosa usual jamais conseguirá exprimir. 
Deste modo, a sua lírica quebrou as formas rígidas da poesia árabe, mantendo, no entanto, bastante presente muitos dos seus mitos.
Nos seus poemas a linguagem é compreendida como um acto mágico. Adonis vê as raízes da sua poesia no misticismo islâmico, por ele considerado como um surrealismo antes do surrealismo europeu.
Entretanto, o mundo árabe fala de adonismo, adonismo esse que tem os seus seguidores entusiásticos, mas também um grande número de inimigos que se encontram, sobretudo, entre os islamitas.
Adonis é, de há vários anos para cá , um dos fortes candidatos ao Prémio Nobel da Literatura.

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